Ele fez de tudo naquele dia. Menos aquilo.
Acordou relativamente cedo, depois de ter ido dormir mais tarde do que gostaria. Pegou o celular e tentou distrair-se. Em vão. Coçou o rosto e lembrou-se do que tinha feito antes de dormir. O cavanhaque. Olhou no espelho aquela configuração de rosto que não estava acostumado. Sentiu-se mais velho, mais másculo, mais sexy e menos ele mesmo. Passou a máquina e acabou com isso.
Na cama, a gata estava ainda sonolenta. Ele passou a mão na sua barriga, procurando a cicatriz da cirurgia já quase imperceptível e notou que os pelos raspados tinham começado a crescer de volta. Ela se contorceu, esticando seu corpo inteiro de forma invejável e ele a deixou em paz. Respondeu a mãe, prometendo ir se alongar. E o fez.
De frente à janela, espregiuçou-se e pôs o corpo para se alongar, sentindo os resquícios de dor da última vez que foi para a academia (havia colocado peso demais e se alongado de menos). O Sol, tímido, escondia-se atrás das muitas nuvens cinzas no céu. Acho que choveu mais cedo, pensou ele, enquanto olhava para baixo com vontade de descer e caminhar pelo condomínio. Hipócrita, bradou mentalmente, três anos morando aqui e você nunca fez isso, mas agora... Abriu a janela ao máximo, como se a liberdade assim ficasse mais próxima e terminou de se alongar. Foi bom. Uma vaga lembrança da antiga rotina. Sentiu o corpo menos dolorido e a mente mais serena. Antes de seguir com os exercícios, foi preparar o café da manhã que, como prometido antes de dormir, teria mingau de aveia.
Preparou a mistura, imaginando se ficaria muito estranha com açafrão e ligou o fogo, abandonando a ideia sem sentido. Do forno, tirou a cuca de banana para cortar um pedaço e quase deixou cair.
- Formigas malditas! - Estavam por toda parte.
Ele rosnava querendo jogar o bolo todo fora, tinha muita aversão a aglomeração de formigas, mas decidiu lidar com isso depois. Clássico.
De volta aos exercícios, começou empolgado e determinado a resistir. Dois minutos de prancha, comemorou, ao som de Sospiri, Opus 70 da playlist de música clássica que ele havia esquecido de desligar enquanto se exercitava.
Checou o celular orgulhoso das costas suadas, enquanto abria um edital para dramaturgos que recebera de sua professora. Ótimo incentivo criativo, estava meio parado das ideias desde que conversara com um amigo sobre ideias para peças que este tinha e que pareciam fazer das suas próprias um tanto supérfluas.
Mas, antes de mais nada, tinha que escrever. O quê? Ora, você sabe muito bem. Eu sei também. Todos sabemos. Quer dizer, tenho minhas dúvidas se ele sabe, mas isso é só porque ele continua protelando tão bem que até me esqueço de todas as vezes em que ele diz que vai fazer.
E, sendo justo, ele até senta em frente ao computador e faz pequenos avanços. Hoje mesmo leu várias páginas. Mas aí se distraiu e veio escrever este conto que estão lendo.
Mas ele prometeu que assim que terminasse ia continuar.
Espero que cumpra.
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